sábado, 27 de janeiro de 2007

VINÍCIUS DE MORAES

Posso até soar antifeminista ao postar aqui a poesia a seguir, mas não o sou meeesmo, me considero até que bem feminista, pra falar a verdade. Acontece que a constatação do texto abaixo é real e indiscutível.... Fazer o quê??? Não tenho nada a ver com isso, foi o mestre quem disse..... :-D


RECEITA DE MULHER

As muito feias que me perdoem
mas beleza é fundamental. É preciso
que haja qualquer coisa de flor em tudo isso
Qualquer coisa de dança, qualquer coisa de haute couture
em tudo isso (ou então
que a mulher se socialize elegantemente em azul, como na República Popular Chinesa).
Não há meio-termo possível. É preciso
que tudo isso seja belo. É preciso que súbito
tenha-se a impressão de ver uma garça apenas pousada e que um rosto
adquira de vez em quando essa cor só encontrável no terceiro minuto da aurora.
É preciso que tudo isso seja sem ser, mas que se reflita e desabroche
no olhar dos homens. É preciso, é absolutamente preciso
que seja tudo belo e inesperado. É preciso que umas pálpebras cerradas
lembrem um verso de Éluard e que se acaricie nuns braços
alguma coisa além da carne: que se os toque
como no âmbar de uma tarde. Ah, deixai-me dizer-vos
que é preciso que a mulher que ali está como a corola ante o pássaro
seja bela ou tenha pelo menos um rosto que lembre um templo e
seja leve como um resto de nuvem: mas que seja uma nuvem
com olhos e nádegas. Nádegas é importantíssimo. Olhos então
nem se fala, que olhe com certa maldade inocente. Uma boca
fresca (nunca úmida!) é também de extrema pertinência.
É preciso que as extremidades sejam magras; que uns ossos
despontem, sobretudo a rótula no cruzar das pernas, e as pontas pélvicas
no enlaçar de uma cintura semovente.
Gravíssimo é porém o problema das saboneteiras: uma mulher sem saboneteiras
é como um rio sem pontes. Indispensável.
que haja uma hipótese de barriguinha, e em seguida
a mulher se alteie em cálice, e que seus seios
sejam uma expressão greco-romana, mas que gótica ou barroca
e possam iluminar o escuro com uma capacidade mínima de cinco velas.
Sobremodo pertinaz é estarem a caveira e a coluna vertebral
levemente à mostra; e que exista um grande latifúndio dorsal!
Os membros que terminem como hastes, mas que haja um certo volume de coxas
e que elas sejam lisas, lisas como a pétala e cobertas de suavíssima penugem,
no entanto sensível à carícia em sentido contrário. É aconselhável na axila uma doce
relva com aroma próprio
apenas sensível (um mínimo de produtos farmacêuticos!).
Preferíveis sem dúvida os pescoços longos
de forma que a cabeça dê por vezes a impressão
de nada ter a ver com o corpo, e a mulher não lembre
flores sem mistério. Pés e mãos devem conter elementos góticos
discretos. A pele deve ser frescas nas mãos, nos braços, no dorso, e na face
Mas que as concavidades e reentrâncias tenham uma temperatura nunca inferior
a 37 graus centígrados, podendo eventualmente provocar queimaduras
do primeiro grau. Os olhos, que sejam de preferência grandes
e de rotação pelo menos tão lenta quanto a da Terra; e
que se coloquem sempre para lá de um invisível muro de paixão
que é preciso ultrapassar. Que a mulher seja em princípio alta
ou, caso baixa, que tenha a atitude mental dos altos píncaros.
Ah, que a mulher de sempre a impressão de que se fechar os olhos
ao abri-los ela não estará mais presente
com seu sorriso e suas tramas. Que ela surja, não venha; parta, não vá
e que possua uma certa capacidade de emudecer subitamente e nos fazer beber
o fel da dúvida. Oh, sobretudo
que ela não perca nunca, não importa em que mundo
não importa em que circunstâncias, a sua infinita volubilidade
de pássaro; e que acariciada no fundo de si mesma
transforme-se em fera sem perder sua graça de ave; e que exale sempre
o impossível perfume; e destile sempre
o embriagante mel; e cante sempre o inaudível canto
da sua combustão; e não deixe de ser nunca a eterna dançarina
do efêmero; e em sua incalculável imperfeição
constitua a coisa mais bela e mais perfeita de toda a criação inumerável.


: : :